sábado, 29 de maio de 2021

UNDERGROUND

Na última década do século passado havia um lugar separado do Tejo por um belo e antigo jardim onde iam desaguar os boémios e os noctívagos profissionais antes do raiar da aurora.
Certa vez estava Johnny Fire de pé entre o bar e a pista assistindo à habitual actuação do conjunto residente às sextas-feiras naquele reactivado café-concerto dum velho cine-teatro, grupo que tinha um estilo meio cabaret meio «pimba» (esta expressão ainda não tinha sido cunhada) que caía que nem ginjas naquele decadente ambiente. Johnny, por feitio de observador inveterado e por hábito de homem da noite, varria com o olhar as mesas e a pista, pensando quão perfeita era aquela banda sonora para todas aquelas personagens que pareciam vindas do além, ou, pelo menos, saídas de variados exploitation movies
Sente um toque no ombro esquerdo, vira-se, e depara-se com uma velha conhecida das longas e loucas noites dessa Lisboa doutras eras. Parecia ter acabado de acordar ou em alternativa ter saído do plateau dum film-noir onde teria feito o papel da escultural e sedutora femme-fatale. Trocavam algumas palavras sobre a actuação do icónico e alcoólico vocalista, que ambos conheciam, quando Johnny sente roçar-lhe algo à altura do joelho. Afasta-se e é boquiaberto que vê irromper pela pista dentro em direcção ao palco um atlético homem sem pernas que avançava à força de braços sobre um tosco carrinho! Sem ninguém perceber bem como, subiu ao palanque, tirou o microfone ao leader e começou ele a cantar, com uma voz potente, algo entre o fado e o flamenco, pleno de trinados de sabor cigano. Perante isto, o cantor do grupo, rapaz duro que já tinha visto muito mas ainda não tudo, virou as costas e foi fazer xixi contra o biombo que servia de fundo ao cenário. 
Johnny e a conhecida entreolharam-se, naquela cumplicidade de quem assiste a algo inacreditável e na certeza de que um dia mais tarde só terão a palavra um do outro para confirmar o bizarro episódio, e o nosso protagonista, neste caso pouco mais do que voyeur, saiu, de repente, regressando a casa com a sensação de missão cumprida: naquele momento tinha descido ao mais baixo do bas-fond da cidade.

quinta-feira, 27 de maio de 2021

A VAMP

Johnny Fire entrou no prédio Arte Nova e subiu ao último andar, guiado pela sua recente amiga. Na verdade era como se esta fosse conhecida de sempre, tais eram as afinidades imediatamente descobertas nesta sua primeira saída. Decorria o histórico ano de 1987 em Lisboa. Tinham acabado de assistir ao hoje mítico concerto de Anamar no Coliseu e de seguida ainda tinham ido dançar ao Frágil. Entraram no apartamento quase deserto. Tábuas corridas, de sólido carvalho, bem enceradas, rangiam levemente sob os passos da animada dupla, que ensaiava uns passos de dança ainda com a última música da noite ressoando na cabeça. Das janelas viradas a nascente avistava-se um jardim intimista semi-privado e da bow-window a norte um emblemático jardim público da cidade. Vistas as vistas, exteriores e interiores, Johnny constatou que a casa estava quase totalmente deserta, num despojado estilo minimalista, só pontuada aqui por uma ou outra boa peça de design e ali por alguma belíssima antiguidade, onde a primeira imagem que aparecia ao entrar-se era um poster da exposição de pintura que decorria à época na Gulbenkian.  Todas as portas e janelas estavam abertas e as divisões desenrolavam-se umas após as outras iluminadas pela luz prateada da Lua e ainda mornas do soalheiro dia de estio. Contudo, a meio do longo corredor principal, surgiu uma porta fechada. Inquirindo sobre o que ali havia, Johnny foi convidado a entreabrir a porta e a espreitar. Para seu espanto, avistou no chão um prato com leite e descobriu, não sem algum sobressalto, um pequeno vulto negro que voava. Era um morcego, de estimação...! Fechou a porta, olhou para ela, que sorria com o ar de uma menina marota que tinha pregado uma partida, e viu nela, com a sua elegante silhueta recortada por um sóbrio vestido preto dum famoso estilista japonês, uma estranha e fascinante parecença com aquele mamífero voador, qual vamp...! 

segunda-feira, 24 de maio de 2021

CENAS DA VIDA LISBOETA

Em finais da primeira década deste século, estava Johnny Fire tranquilo numa esplanada lisboeta, no seu remanso pós-prandial, tomando café e fumando uma cigarrilha, e lendo o seu digestivo livrinho do Miguel Esteves Cardoso, quando presenciou uma genial tirada de um jovem rapaz. Numa mesa próxima, mãe e filha. A primeira, com uma jovialidade requintada de bonita mulher madura; a segunda, jovem rapariga em flor, de uma frescura eufórica. Esta última, a filha, agitava-se na cadeira, mexia no cabelo, e lançava olhares — tão insinuantes, quão irritantes — a dois rapazes, da mesma idade, que se encontravam numa mesa mais além. Um deles, olhou-a nos olhos, e disparou em voz alta, mas em tom educado: «— Ó convencida!... A tua mãe é mais gira do que tu...!». Johnny conteve-se, para não lançar uma sonora risada. Limitou-se a trocar um respeitoso sorriso com a mãe. É bom saber que ainda há humor inteligente em Portugal.

BOY MEETS GIRL

Johnny Fire estava numa boîte algarvia, em pleno Verão, nos idos anos 80 do século passado. Dançava na pista quando reparou numa beldade sentada nas margens da mesma. Após se mirarem e remirarem, discretamente e à descarada, Johnny avançou na sua direcção e dirigiu-lhe a palavra na língua franca dessas paragens - o inglês. Mostrou-se espantada e retorquiu na mesma língua: «Pensei que eras francês». «Porquê?», contrapôs. «Porque danças como se fosses de Paris», rematou. Apercebendo-se do sotaque da doce mas atrevida personagem feminina, que denunciava a sua origem geográfica, Johnny, para a impressionar, riposta em francês: «Sou português, de Lisboa, e também falo um pouco de francês, mas não vivo em Paris...». «Ah, bom!», disse a bela francesa, sorrindo. «Já agora, porque pensaste que eu era de Paris?» (o tratamento foi por vous, mas decidi traduzir aqui desta forma). «Porque os parisienses dançam sempre da mesma maneira, sem sair do sítio, como se não tivessem espaço, onde quer que estejam, pois as discotecas parisienses estão a abarrotar de gente, e eles ficaram assim...».
Nesse mesmo princípio de Outono, após uma troca de dois ou três postais, Johnny meteu-se no Sud-Express; e, depois de se apear e de se aventurar à boleia e a pé por velhas estradas rurais, conseguiu finalmente chegar a bom porto e bater-lhe à porta.  Era um antigo chateau, nos arredores de uma aldeia medieval. Para assinalar a sua chegada, a simpática francesa tinha reunido um pequeno grupo de amigos das quintas das redondezas. Depois de peripécias várias, das quais se destaca um excêntrico e opíparo jantar numa távola redonda na torre, passaram os doze a uma monumental sala no corpo principal da casa, onde curiosamente acabaram todos a dançar apertados slows, como se estivessem em Paris e não tivessem espaço...! E, claro, Johnny, já sozinho com a anfitriã no pavilhão de caça, não resistiu a - devolvendo-lhe o remoque da primeira conversa - sussurrar-lhe ao ouvido a constatação desse delicioso paradoxo. A sua gargalhada fez brilhar os olhos dos veados embalsamados. 

sábado, 22 de maio de 2021

DE ACTOR A VOYEUR

A misteriosa rapariga vestida sempre sóbria e elegantemente de preto e que lia livros sentada na sua varanda em pose blasé sob a doce luz do Inverno ao primeiro ar quente da Primavera apareceu em todo o seu escultural esplendor de surfer apanhando banhos de sol como Deus a lançou ao mundo. Parece mentira mas é a mais pura e bela das verdades. E vá-se lá saber porquê desta vez o blogger argenté lembrou-se dos bons velhos tempos em que lhe chamavam Johnny Fire.


DELICIOSOS PARADOXOS

Johnny Fire, certo dia de meados da década de 80 do século passado em Lisboa, partiu em deambulação, por praia e serra, com uma famosa — e muito dada — cortesã da cosmopolita sociedade lisboeta da época. Sabia que maior do que o prazer de a possuir seria o de não lhe tocar sequer. Assim o fez. Sendo culta — além de atraente —, teve com ela uma simpática jornada de conversa variada. E ficou-se por aí. Por estas e outras lhe chamavam também Johnny Ice.

INÍCIO DA AVENTURA

Blogue novo, vida nova.