quarta-feira, 28 de julho de 2021

UMA APOSTA

Farto de contar histórias passadas com o nosso Johnny Fire e betos, chegou a hora de começar a narrar episódios mais marados. Como aperitivo deixo já aqui escrito preto no branco que o nosso personagem tinha o hábito de se vestir dos pés à cabeça de Conde Drácula para várias festas, especialmente de Carnaval, mas não só, e assim o fez pelo menos em Lisboa, Porto e Madrid.
Contudo, vou começar por alinhavar umas frases sobre uma cena (no sentido de encenação, na verdade) que Johnny fez em 1987. Estudava à data Direito por linhas tortas quando decidiu precisamente nesse ano desistir desses nobres estudos para se embrenhar no mundo do Cinema em particular e das Artes em geral, sendo que a boémia foi muito provavelmente o principal impulso para abdicar daquela velha via e enveredar por este novo caminho...
Esta aventura, se bem me lembro, terá acontecido durante esse limbo, qual ritual de passagem do eu (académico e estético). Johnny apostou com um amigo que iria ao mais in cabeleireiro de Lisboa e faria um «corte à futebolista» (designávamos assim um corte de cabelo foleiro que os jogadores de futebol dos anos 70/80 usavam: comprido atrás, curto de lado e risca ao meio em cima; enfim, um horror). Assim fez. O primeiro choque que provocou foi ter pedido este corte e a seguir ser visto no supradito lugar por uma élite de arquitectos, artistas, gente da moda, belíssimas modelos, etc. e tal nessa figura!  Passada esta primeira prova foi sair à noite percorrendo todos os lugares em voga do Bairro Alto e não só. As reacções dariam para um tratado sobre a psicologia do povo português! Desde conhecidos que fingiram não vê-lo até outros que tentaram falar normalmente com ele, mas sem conseguir evitar lançar olhares de relance à sua sinistra cabeleira. Entre todos, guardará sempre a memória de um amigo arquitecto, mais frontal, que lhe perguntou, meio espantado: «Mas o que é que se passa?». Johnny não se desfez perante ele nem perante ninguém. Comportou-se até ao nascer do dia como se nada de diferente houvesse em si. Assim, o amigo com quem a aposta fora feita, e o seguira à distância, desde o cabeleireiro, pela noite dentro, declarou-lhe ao raiar da aurora em pleno Cais do Sodré que Johnnny Fire tinha ganho. No dia seguinte cortou o cabelo normalmente e foram jantar ao melhor restaurante de Lisboa. A choruda conta  dos quatro (foram com duas amigas) pagou-a o desafiador amigo, o qual, sendo homem que dá especial importância ao dinheiro, ficou anos a remoer a aposta, talvez mesmo até hoje...

sábado, 24 de julho de 2021

DA VELHA E BELA ALBION

Numa das idas a Londres de Johnny Fire, por meados dos anos 80 do século passado, década de quase todas as histórias deste blogue, foi ele certa vez sair com um grupo eclético. Já sabemos que o nosso personagem gosta de variar entre ambientes opostos e pessoas contrastantes, saltando com facilidade de um lugar e de um círculo para o outro. Contudo, não é habitual que frequente sítios e grupos com essa mesma sua heterodoxa característica nesta matéria. Trocando isto por um saudoso exemplo: sempre gostou de começar a noite no Bairro Alto a jantar bem num bom restaurante ouvindo fado de qualidade com amigos betos e acabá-la num bar de vanguarda ou mesmo underground, desse  mesmo bairro lisboeta, dançando ao ritmo do som da frente rodeado de conhecidos das artes ou da boémia. Várias vezes teve a sorte de ter pessoas semelhantes a si com as quais fez este programa e outros que tais, quiçá mais radicais. Contudo, estas contam-se pelos dedos, e as que guarda com mais saudade (até porque algumas já partiram deste mundo) são mulheres, à época especialíssimas miúdas de vinte e tal anos.
Voltando àquela noite no Reino Unido, avançava pela rua o já atrás referido grupo, que tinha de tudo um pouco, não sendo, no entanto, muito numeroso: cerca de oito rapazes e raparigas; sloanes e trendies; de Portugal, Inglaterra, França e Itália. Subitamente, um muito tímido mas desbocado amigo português de Johnny avança para uma inglesa muito sloane e faz-lhe uma pergunta surreal. Cabe aqui abrir um parêntesis para  relembrar o facto de serem as pessoas reservadas as que mais capazes são de dizer as maiores barbaridades, ou pelo menos inconveniências, ou simplesmente fazer perguntas aparentemente estúpidas, como foi o caso. Note-se que ele tinha acabado de a conhecer e perguntou-lhe, do nada, por que é que as inglesas usavam a carteira à tiracolo (com a correia atravessada à frente do peito)? A miúda a quem ele inquiriu sobre isto era o que se diria em português uma menina bem. Tinha também, além do altíssimo pedigree familiar, um peito dos mais belos que vi até hoje. Ela olhou-o fixamente e respondeu-lhe, no melhor pragmatismo britânico: «É porque Londres está a tornar-se uma cidade perigosa, com gente indesejável, e fazemos isto para não sermos assaltadas. Aliás, estou cá só para estudar,  mas vivo no campo com os meus pais». Mal ele ainda acenava com a cabeça, concordando com a explicação, ela prega-lhe um brutal estaladão na cara! E remata: «Isto foi por teres olhado de maneira feia para um sítio bonito.»
Entretanto, esta moda chegou a Lisboa (pela mesma razão ou não...) e sempre que Johnny Fire passa por uma senhora a usar a carteira deste modo não consegue evitar rir-se para dentro recordando este delicioso episódio nem deixar de recordar essa agridoce inglesa que teria feito furor entre os meios betos lusitanos se cá tivesse chegado a vir antes de casar e  constituir numerosa família no countryside.

domingo, 18 de julho de 2021

ELOGIO DAS BETAS

Os leitores já certamente perceberam que Johnny Fire é difícil de encaixar naquelas categorias que sociólogos e outros intelectuais da treta adoram. «Ou seja», como se diz agora, é, como também se diz agora, «fora da caixa». Assim sendo, além de outros espaços, diametralmente opostos em arquitectura e ambiente, frequentava habitualmente com o seu grupo beto a mais beta e indescritível boîte (agora diz-se «discoteca», mas é um erro, pois esta é uma loja que vende discos) lisboeta da época. A decoração era de tal forma irreal e foleira que o sítio logo foi alcunhado com o nome duma igualmente pirosa mas famosa sapataria da época. Diga-se em boa verdade, e para que não haja confusões, que, apesar de tudo o que atrás fica escrito, este local nocturno era frequentado pelas meninas e pelos meninos das melhores famílias, sendo que os restantes não conseguiam lá entrar, nem que tentassem pagar mundos e fundos à porta. Enfim, outros tempos. Bons e saudosos.
Estando certa noite nesse sítio com uma amiga betíssima, mas muito destravada, e estando a música um horror, propôs-lhe levá-la a um lugar de vanguarda (alternativo, dir-se-ia hoje). Ficava quase escondido, embora num tradicional bairro de Lisboa. Lá chegados, Johnny vê de imediato a porta ser-lhe aberta pelo porteiro e conduz a sua amiga, espantada mas não assustada pela fauna que se cruzava com eles pelo caminho, por uma estreita e comprida escada que conduzia a uma cave ocupada quase integralmente por um grande pista de dança. Aí, a música era excelente. A grande sala minimalista era convidativa, combinando um design moderno com algumas peças rétro. Em conclusão, aqui transparecia um bom-gosto que chocava com o mau-gosto donde tinham vindo. Avistavam-se personagens bizarras, mesmo para os padrões de hoje em dia, e viam-se algumas das mais belas jovens mulheres da Lisboa desses tempos (as quais, aliás, fascinariam, e algumas delas fascinavam de facto, igualmente em Paris ou Nova Iorque). Perante a surpresa da sua super-beta amiga, algumas delas falaram a Johnny. Ele trocava com essas dois beijinhos (coisa que ela achou de mau-gosto, claro), tendo ele que se jusificar dizendo que eram os dois beijinhos da vanguarda...
Foram ao balcão do bar, abasteceram-se de bebidas, lançaram-se na pista de dança, voltaram ao bar, e de novo se atiraram energicamente para o meio da pista, e assim sucessivamente. Pouca gente sabe, mas, as chamadas betas sempre beberam e dançaram mais e melhor do que as ditas alternativas, além de outras matérias em que também as superam, as quais me abstenho de aqui revelar. Subitamente, a companheira de Johnny nesta aventura confidenciou-lhe que não se sentia bem ali assim vestida, pois estava de vestido de tafetá, como era da praxe à época no nosso meio (detesto esta expressão, mas ajuda a enquadrar as pessoas; uma questão de classe, entenda-se). Johnny sussurrou-lhe que estava óptima assim, embora na verdade sempre tivesse achado  que era muito mais sexy e elegante a forma de vestir das outras, as prafrentex.
Num impulso, a sua amiga dirige-se na direcção de uma conhecida de Johnny, que ela não conhecia de parte alguma mas que tinha um corpo parecido com o seu em estatura e medidas; uma boa figura, portanto. Fire fica de boca aberta quando repara que ambas entram juntas na casa-de-banho depois de uma breve troca de palavras entre elas. Após breves minutos, que lhe pareceram uma eternidade, pois estava on fire pela ansiedade que o momento lhe estava a provocar, é surpreendido pela aparição da amiga e da conhecida (que na verdade era uma conhecida modelo, coisa que a amiga não fazia a mínima ideia) com as roupas trocadas. A beta mais betinha da sua zona tinha tido a ousadia de fazer à outra esta louca proposta e a outra aceitou-a. Assim, dançaram e beberam e fumaram (bons tempos em que se fumava dentro dos sítios) até ao fim da noite, ao som da então melhor música da cidade. A modelo despediu-se de Johnny e da amiga com um beijo na boca de cada um e de seguida desapareceu, de tafetá e tudo!, no meio da exótica fauna de estilistas e modelos e músicos e afins. Johnny não resistiu e disse à amiga: «vê?, afinal esta gente também dá um beijinho, se calhar ainda é sua prima...!» A resposta foi uma sonora gargalhada, pois o humor é dos tais requisitos em que as betas batem as outras.
Depois, levou-a a tomar o pequeno-almoço num sítio clandestino, antes de depositá-la, metida no avant-garde vestido preto da melhor estilista portuguesa (que lhe assentava como uma luva, diga-se de passagem, mas o qual ela nunca mais usou, nem devolveu), na histórica casa de família de seus pais, que curiosamente era pertíssimo do cenário principal desta história real que tem uma moral mas não vou dizer qual é. 

sexta-feira, 9 de julho de 2021

PARA A COMPREENSÃO DE JOHNNY FIRE E SUAS ANDANÇAS

Johnny Fire é um pouco (eufemismo parvo que se usa agora) como o Autor destas linhas. Gosta de jardins, ou talvez ainda mais e muito principalmente de árvores, de livros, pois ler constitui para si um enorme prazer, e de mulheres. Aqui, ponto final e inicial, na medida em que as chamadas Aventuras de Johnny Fire, sub-intituladas Memórias e outras histórias, revelarão amiúde, ora subliminarmente ora explicitamente, a superior importância desta última componente, da atrás referida e destacada trilogia lírica (por oposição à sua igualmente pessoalíssima trilogia épica, que fica para outro dia), nas andanças (qual Johnny Walker) do fio-condutor destas narrativas curtíssimas; mas, algumas, de longo alcance, não fossem misteriosas mulheres as personagens centrais de quase todas...
Coisa curiosa a assinalar reside no facto de Johnny Fire nunca procurar mas antes encontrar ou melhor ainda ser encontrado por jardins, livros e mulheres. Digo isto sem qualquer esoterismo de pacotilha, muito menos leviano pretensiosismo, mas com a certeza de assim sempre ter sido com o nosso conhecido personagem. Acontece, claro, que, depois de estabelecer contacto empático com os seus eleitos de entre estes três elementos, surge uma cumplicidade secreta entre ele e esses preferidos lugares, escritos e pessoas. Muitas histórias deste blogue são e serão pois relatos de felizes encontros e consequentes convergências físicas e espirituais mas também de tristes desencontros e frios afastamentos. É a vida tal e qual ela é.