domingo, 18 de julho de 2021

ELOGIO DAS BETAS

Os leitores já certamente perceberam que Johnny Fire é difícil de encaixar naquelas categorias que sociólogos e outros intelectuais da treta adoram. «Ou seja», como se diz agora, é, como também se diz agora, «fora da caixa». Assim sendo, além de outros espaços, diametralmente opostos em arquitectura e ambiente, frequentava habitualmente com o seu grupo beto a mais beta e indescritível boîte (agora diz-se «discoteca», mas é um erro, pois esta é uma loja que vende discos) lisboeta da época. A decoração era de tal forma irreal e foleira que o sítio logo foi alcunhado com o nome duma igualmente pirosa mas famosa sapataria da época. Diga-se em boa verdade, e para que não haja confusões, que, apesar de tudo o que atrás fica escrito, este local nocturno era frequentado pelas meninas e pelos meninos das melhores famílias, sendo que os restantes não conseguiam lá entrar, nem que tentassem pagar mundos e fundos à porta. Enfim, outros tempos. Bons e saudosos.
Estando certa noite nesse sítio com uma amiga betíssima, mas muito destravada, e estando a música um horror, propôs-lhe levá-la a um lugar de vanguarda (alternativo, dir-se-ia hoje). Ficava quase escondido, embora num tradicional bairro de Lisboa. Lá chegados, Johnny vê de imediato a porta ser-lhe aberta pelo porteiro e conduz a sua amiga, espantada mas não assustada pela fauna que se cruzava com eles pelo caminho, por uma estreita e comprida escada que conduzia a uma cave ocupada quase integralmente por um grande pista de dança. Aí, a música era excelente. A grande sala minimalista era convidativa, combinando um design moderno com algumas peças rétro. Em conclusão, aqui transparecia um bom-gosto que chocava com o mau-gosto donde tinham vindo. Avistavam-se personagens bizarras, mesmo para os padrões de hoje em dia, e viam-se algumas das mais belas jovens mulheres da Lisboa desses tempos (as quais, aliás, fascinariam, e algumas delas fascinavam de facto, igualmente em Paris ou Nova Iorque). Perante a surpresa da sua super-beta amiga, algumas delas falaram a Johnny. Ele trocava com essas dois beijinhos (coisa que ela achou de mau-gosto, claro), tendo ele que se jusificar dizendo que eram os dois beijinhos da vanguarda...
Foram ao balcão do bar, abasteceram-se de bebidas, lançaram-se na pista de dança, voltaram ao bar, e de novo se atiraram energicamente para o meio da pista, e assim sucessivamente. Pouca gente sabe, mas, as chamadas betas sempre beberam e dançaram mais e melhor do que as ditas alternativas, além de outras matérias em que também as superam, as quais me abstenho de aqui revelar. Subitamente, a companheira de Johnny nesta aventura confidenciou-lhe que não se sentia bem ali assim vestida, pois estava de vestido de tafetá, como era da praxe à época no nosso meio (detesto esta expressão, mas ajuda a enquadrar as pessoas; uma questão de classe, entenda-se). Johnny sussurrou-lhe que estava óptima assim, embora na verdade sempre tivesse achado  que era muito mais sexy e elegante a forma de vestir das outras, as prafrentex.
Num impulso, a sua amiga dirige-se na direcção de uma conhecida de Johnny, que ela não conhecia de parte alguma mas que tinha um corpo parecido com o seu em estatura e medidas; uma boa figura, portanto. Fire fica de boca aberta quando repara que ambas entram juntas na casa-de-banho depois de uma breve troca de palavras entre elas. Após breves minutos, que lhe pareceram uma eternidade, pois estava on fire pela ansiedade que o momento lhe estava a provocar, é surpreendido pela aparição da amiga e da conhecida (que na verdade era uma conhecida modelo, coisa que a amiga não fazia a mínima ideia) com as roupas trocadas. A beta mais betinha da sua zona tinha tido a ousadia de fazer à outra esta louca proposta e a outra aceitou-a. Assim, dançaram e beberam e fumaram (bons tempos em que se fumava dentro dos sítios) até ao fim da noite, ao som da então melhor música da cidade. A modelo despediu-se de Johnny e da amiga com um beijo na boca de cada um e de seguida desapareceu, de tafetá e tudo!, no meio da exótica fauna de estilistas e modelos e músicos e afins. Johnny não resistiu e disse à amiga: «vê?, afinal esta gente também dá um beijinho, se calhar ainda é sua prima...!» A resposta foi uma sonora gargalhada, pois o humor é dos tais requisitos em que as betas batem as outras.
Depois, levou-a a tomar o pequeno-almoço num sítio clandestino, antes de depositá-la, metida no avant-garde vestido preto da melhor estilista portuguesa (que lhe assentava como uma luva, diga-se de passagem, mas o qual ela nunca mais usou, nem devolveu), na histórica casa de família de seus pais, que curiosamente era pertíssimo do cenário principal desta história real que tem uma moral mas não vou dizer qual é.